quarta-feira, abril 09, 2008

Amor pouco convencional

Este texto que se segue tem anos e é de uma pessoa pela qual não nutro grande simpatia, mas há que lhe dar o crédito por um excelente texto, não pelo formato do texto em si, mas pela mensagem. É o “Elogio ao amor” do Miguel Esteves Cardoso, que foi publicado no Expresso. Depois disso apareceu em inúmeros sites que têm uma coisa em comum, pertencem a pessoas que sabem o que é Amar de forma pouco convencional.

Presumo que poucos vão ter paciência para chegar ao fim do texto. Eu cheguei, porque é curioso aperceber-me de que a minha vida não é assim tão única e que outros também sabem do que falo. Durante muito tempo questionei se mais alguém saberia do que estava a falar quando falava de Amor. Egocentrismo, talvez.

Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro.
Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo. O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
(...) Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.
Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental".
Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.
[Elogio ao amor por Miguel Esteves Cardoso in Expresso]

Eu não concordo com tudo, nem entendo algumas coisas, mas revejo-me na descrição de quem Ama, de quem não disse que sim só porque era conveniente, porque ele estava mesmo ali ao lado, porque a verdade é que raramente o esteve. São mais os dias que não estou com ele, sempre foram. A nossa vida faz-se de encontros e desencontros e a nossa banda sonora bem podia ser a do início do filme Love Actually, quando se vêem pessoas a encontrarem-se num aeroporto. Já estivemos separados por 8 e até por 11 horas, não de distância, mas de diferença horária. Durante meses vivemos em continentes distintos, mas também já vivemos juntos em mais do que um continente. As nossas profissões levaram-nos a sítios distintos e temos passado os últimos anos a tentar descobrir como é que vamos fazer para viver mais do que um mês no mesmo país, na mesma cidade. Às vezes até conseguimos uns tempos juntos, mas o dia em que temos de voltar a despedir-nos está sempre agendado para breve. Everytime we say goodbye I die a little. Desde o início que sabia, sem o saber ao certo, que este Amor não ia dar jeito nenhum, que não era conveniente, mas não hesitei um segundo (nem que pudesse). Não foi Amor à primeira vista, mas também não foi planeado. Nunca tinha arriscado assim, antes planeava tudo e por isso sei que nunca tinha Amado. Às vezes invejo (sentimento feio) os Amores de hoje, aqueles que o MEC descreve, por serem tão mais simples, tão mais convenientes. Depois lembro-me de meia dúzia de episódios dos muitos que já vivemos e reconsidero. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. E quando pode não há nada no mundo que o supere.

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